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Para não esquecer o samba-rock

“A música é muito mais antiga que as palavras. (…) Elas vieram, uma a uma, daquele lugar que eu desconhecia, mas que no entanto senti imediatamente que eram minhas e dos meus.”


(W.E.B. Du Bois, sociólogo, historiador, escritor, editor e ativista negro norte-americano)


Mississippi — Autor desconhecido

Escrevo esta reflexão me desviando do objetivo inicial que me levou a debruçar-me com a caneta, sobre as folhas de papel. Eu pretendia falar sobre aquilo que considero ser a origem do samba-rock como movimento/dança e, posteriormente, como gênero musical.


Sei que me empenharia numa árdua e difícil tarefa, afinal, falar sobre os primórdios do que hoje chamamos de samba-rock, é um exercício que traz inúmeras contradições e análises adversas. Entretanto, como eu já dissera no início, não venho mais com a intenção de refletir sobre o samba-rock sob essas condições. Reflito agora sobre o samba-rock como quem deseja reconstituir essas memórias-afro-afetivas quedurante séculos, introduziu na diáspora africana significados para além da colonização e do tráfico de pessoas para a escravidão.


Escrevo para registrar aquilo que não posso esquecer. Escrevo como quem arrasta na memória os móveis antigos da sala, enquanto o mais velho da casa convida os mais jovens a fazer parte dessa dança-movimento. Na vitrola, um disco elucida a expressão extra-musical de um homem que deseja ser chamado pelo seu próprio nome. Um homem que reivindica para si uma história dentro da história; que não pode mais ser plastificado, ou tratado como objeto-mercadoria nas mãos dessa suposta humanidade eurodescendente. Esse homem tem um nome porque deseja se afirmar no mundo em que vive, na comunidade, e na sociedade em que pertence. Esse homem se chama Benedito João dos Santos Silva Beleléu. Vulgo Nêgo Dito, o Cascavel.


Tomado pelo suingue e pela narrativa desse homem Nêgo Dito, minha prima segura abruptamente em minha mãos à espera de ser conduzida — ou até mesmo seduzida — por mim nessa dança-movimento. Mesmo invadido pelo nervosismo e pela timidez, observo com muita atenção o que me ensina o mais velho sobre a arte de permitir-se tocar e ser tocado por alguém. Revelo também o pouco do que adquiri nas noites em que conduzi apaixonadamente a porta do guarda-roupa de minha mãe. Hoje, dou gargalhadas enquanto detalho o que senti nessa experiência vivida; mas não pretendo me alongar nessa recordação. Ainda me vejo arrastando móveis antigos em minha memória, reivindicando um pouco mais de espaço no tempo para recordar o quão belo foi ver aqueles corpos negros se tocando em constante movimento na sala de minha casa. Vejo uma espécie de intimidade fluindo sob seus corpos, ilustrando para mim e para os meus, o quanto eles se conhecem. E ainda que nós, os mais jovens, saibamos tão pouco sobre o amor, sei que desejo viver algo semelhante àquilo que eles me ofertaram naquele breve instante de vida.


Na cozinha, sinto o cheiro do feijão de minha avó. No quintal, ouço meu avô pedindo para o meu tio, irmão mais novo de meu pai, buscar o carvão no mercadinho do Seu Zé.


A casa está cheia. As crianças correm, e o tempo também.E nessa correria,nesse andamento violento e delirante de São Paulo, “assim sem perceber, eu era adulto já”. Eu! Um homem, negro, caindo e levantando inúmeras vezes neste percurso que chamei de vida. Eu! Um homem, negro que registra memórias-afro-afetivas para não correr o risco de perder o significado. Escrevo recordando-me que, assim como Tim Maia, eu também busco “uma razão para viver”, mesmo que parte dessas pessoas que me ajudaram a construir essas memórias-afro-afetivas, já não estejam mais vivas. Mesmo que parte dessas pessoas tenham sido consumidas pela angústia, pela frustração, pelo medo, pela vergonha: por todas essas facetas do racismo que estrutura as relações na sociedade em que vivemos.


Um amigo meu me dissera um vez que “o racismo não é didático; mata também quem não aprende”. Logo, escrevo para não morrer. Escrevo como quem deseja continuar fazendo parte dessa dança-movimento do qual fui convocado a participar. Danço como quem deseja continuar a desatar esse nó que me atravessa desde o primeiro navio negreiro atracado nesta estacionada Terra de Vera Cruz.


Danço como quem deseja se desprender dos esteriótipos negativos projetados sobre corpos negro-africanos desde o período colonial e escravista no Brasil. Danço como quem deseja refletir com o corpo, a pergunta que escutei esses dias:

“Por que vocês, malditos negros, [ainda] dançam?”

(Reflexão lançada por Salloma Salomão, músico, historiador e pesquisador, no documentário Uma Historia de Luta e Dança — O Preto Som das Ruas)


Escrevo porque só morre aquele que é esquecido. E hoje, eu decidi que não irei esquecer.


Luan Charles

29 de agosto de 2020

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